
Fevereiro 2017
DESESTERRO(*)
Já na infância descobri que seria poeta, as palavras saíam fáceis.
Na adolescência descobri que seria alcoólatra, pois o álcool descia fácil.
Fiz jus a meu nome, dado por papai, Fernando Pessoa; a vida me tornou poeta e alcoólatra, tudo muito cedo.
Amante das palavras e do absinto.
Amante de Cidinha, com seus olhos verdes, pele alva.
Ela, dama prendada. Cozinhava, costurava e amava como ela só.
Eu, vagabundo. Se não pudesse encher o bolso com as palavras encheria o coração da mulher amada. Cida não aceitou coração cheio e barriga vazia; esvaziei o peito e enchi a cara no bar do seu Pereira, santo dos rejeitados.
Para Cida fiz de tudo, tudo que as palavras e os trocados escassos me permitiam fazer: serenata, flores roubadas, versos soltos em papel de pão e até um coração na parede da família.
Esta, a gota d' água.
Depois que desenhei um coração em seu portão, Cida me esqueceu de vez.
Eu bebi dia e noite para esquecer.
Mamãe, com medo de me perder, internou- me em um sanatório; lá me perdi de vez, na falta do diabo verde, escrevia versos após versos, depois comia. Coisa de maluco mesmo.
Por ali fiquei por anos, me curei de tudo, das dores, das canas e amores.
Sai com a certeza da morte, pois se tiras do poeta a musa e o copo , só resta a morte.
Que seja quente, pois o frio consumiu a alma.
Então, sucumba- me, mas que seja quente.
(*) Observação da colunista: o nome "desesterro" me veio após a leitura do livro com o mesmo nome. A concepção da palavra representa seu oposto, no caso, desterro: desenterrar; ele deseja o contrário, ser enterrado.