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                                                Um tal José, um tal trabalho

 

           

           Acho que eram meados de agosto, não me lembro ao certo.

         Tinha então dez anos de idade, eu e minha família havíamos acabado de chegar de Minas Gerais para viver em São Paulo, a terra das oportunidades.

          Meu pai, recordo-me bem, trabalhava todos os dias, isso incluía feriados, sábados e domingos; ele chegava bem à noite, eu o esperava junto aos meus irmãos, para recebermos cada um, sua porção de doces. Isso se tornou um ritual durante todos os anos em que vivi com ele.

     Todas as vezes que alguém perguntava onde estava meu pai, a resposta era indiscutivelmente a mesma: ‘’Ele está trabalhando’’.

          Hoje, falar de trabalho é falar sobre meu pai, seu José do Carmo, e se é pra falar de trabalho, falo do meu pai, que acaba sendo a mesma coisa, e sendo assim, não posso deixar de contar do dia em que aprendi o que era trabalho, e foi ele, o tal José quem me ensinou.

        Chovia forte em São Paulo, um frio no qual eu nunca, em meus 31 anos de idade, havia experimentado outro igual. Meus irmãos, minha mãe e eu, nos amontoávamos no pequeno sofá da casa simples em que vivíamos naquela época, uma sopa quente exalava um cheiro de mandioquinha cozida, que se eu me concentrar bem, posso senti-lo ainda hoje; a noite já se adentrava e meu pai demorava mais que o normal para chegar.

Minha mãe tentava disfarçar a preocupação, falava repetidas vezes que era a chuva, os trens deviam estar todos parados, mas os olhos não mentiam o desespero de não saber o porquê do atraso incomum. Minha mãe serviu a sopa, e ficamos todos juntos, feito um rebanho de animais que se esquentam uns aos outros, enquanto as horas teimavam em passar e não trazer meu pai para distribuir as esperadas guloseimas.

          Já era quase meia noite quando ouvimos um barulho na porta; somente minha mãe e eu  permanecíamos acordadas. Ele abriu a porta devagar, como quem deve.

         Nunca vou me esquecer da imagem: sua cabeça estava toda enfaixada, com uma tira de pano ensopada pela chuva; sua camiseta branca encardida ficara mesclada de vermelho pelas manchas de sangue; ele olhou para minha mãe e disse:

           _‘’ Eu caí da escada do trabalho, mas está tudo bem agora.’’

        Meu coração doeu tanto, que eu nem sabia que coração podia doer daquela forma, estando inteiro. Ele tomou um banho demorado e tomou um pote de sopa, enquanto minha mãe chorava discretamente a seu lado, com piedade.

          Eu não dormi naquela noite, pois algo que viria a me levar por toda a vida me tomou por dentro. Eu amava aquele moço de cabeça quebrada.

         Nos dias que se passaram meu pai ficou em casa. O resultado daquela queda foram vinte e cinco pontos e uma dor de cabeça que o tomava diariamente no início do jornal da noite. Ele não voltou para o trabalho, o dispensaram.  Não era um trabalho fixo, e naquela época as coisas eram meios desregradas quanto à direitos trabalhistas.

         Os dias continuavam a passar; comecei a sentir falta dos doces, falta da sopa, falta da falta que meu pai fazia quando passava o dia todo a trabalhar. Ele sofria muito, pois ainda não estava recuperado, sofria ainda mais quando via o armário vazio.

         Um dia acordei pela manhã, ouvindo o barulho dos martelos batendo. O ruído vinha do quintal, meus irmãos já estavam lá assentados em volta do patriarca, ele encaixava pedaços de madeira um no outro, até que bancos se formavam, depois os encapava com um couro colorido, ao final o chamava de puffs.

          Ele passou metade do dia naquela função, e ao terminar, olhou para mim e disse:

          _Coloque seu tênis querida, vamos comprar doces.

         Eu calcei meu par de velhos e únicos sapatos, com uma alegria inexplicável gritando dentro do peito. Ele me entregou um dos puffs, carregou três com ele, meu irmão levou mais dois, e de porta em porta, meu pai ia oferecendo seu trabalho aos vizinhos. Eu precisei somente vê-lo fazer uma vez e já entendi tudo, estávamos trabalhando, todos nós, meu pai havia aberto uma empresa e nos contratado para trabalhar com ele.

        Naquele dia vendemos quatro dos seis puffs e antes de irmos para casa, fomos ao mercadinho do bairro, onde meu pai comprou três sacolas cheias de mantimentos e claro, não se esqueceu dos doces.

       Os dias que se seguiram foram iguais, às vezes vendíamos dois, três, quatro, ou nenhum puff, mas saíamos todos os dias para vendermos o trabalho do Seu José, e no final levávamos para a casa uma porção de suor, alguns calos nas mãos e um saco de doces.

        O tempo trouxe coisas novas, e alguma destas era melhor nem terem chegado; outras mudaram nossas vidas. Estas novas ficarão para uma próxima vez, mas esta história da cabeça quebrada de papai entrou para memória como parte de mim, parte de tudo que não posso e não quero esquecer.

          Essa época me rendeu uma pré-diabetes que não trocaria por nada, uma porção extra de dignidade, e me ensinou tudo que sei sobre trabalho e parte do que sei sobre o amor.

Viviane Santyago

CHRONICA

Outubro 2016

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