
Fevereiro 2017
SAUDADE
Se, na dor, algum poeta descrever seus sentimentos
A primeira palavra que algema sua língua é saudade
Um camaleão fêmeo que se adapta através dos tempos
Dominadora e amarga e que se impõe como prioridade
A ansiedade que provoca a distância é sua parceira
Desejos de amor não correspondido... Nisso é a tal
E o clamor pelas perdas a tornam uma doce matreira
É como lágrima, mas sem a união entre açúcar e sal
Dizem alguns amantes que irão morrer por sua causa
Outros, mais deprimidos, quase arriscam o suicídio
Raros são os que sofrem solitários sem fazer pausa
Como os que vivem em convento, quartel ou presídio
O incrível é o sutil domínio que exerce às pessoas
Manipulando e sufocando, sem ter braços nem pernas
Porém ela também tem doçura e articula coisas boas
Recupera encontros antigos e até lembranças ternas
A pororoca onde as águas do rio e do mar se beijam
Zumbidos dos insetos e estranhos ruídos nos campos
E aguardadas viagens de passeio que muitos desejam
Repousando nos sonhos e nas orações para os santos.
Sérgio Abel Reginatto
Porto Alegre - RS
ME VIRO
Não sei se me viro em estrelas
ou viro uma folha rasgada
Não sei se me viro em poesia
ou viro uma prosa encantada
Não sei se me viro em fera
ou viro um poço de amores
Não sei se me viro em pedaços
Ou viro pedaços de dores
Não sei se me viro criança
Ou viro somente mulher
Se me viro em rosa menina
Ou viro semente qualquer
Só sei que desviro os pedaços
Perdidos no meu coração
Reviro versos encantados
Alados na imaginação.
Palmira Heine
Salvador - BA
MICROCONTOS
MENTIRAS NO JANTAR
Vá lavar as mãos
E aguce o paladar,
Pois essa noite
Eu servirei
Mentiras no jantar.
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VOLTAR E FICAR
Não posso obrigar
Ninguém a ficar;
No máximo,
Dar bons motivos
Para ela voltar.
Evandro Aranha
Sorocaba - SP
COMO UMA CRIANÇA
Como uma criança
Quero ser como uma criança que tem criatividade espontânea
Respiração cutânea
E vontade instantânea.
Quero ser como uma criança que não age com preconceito
Que olha com paixão sem ver defeito
E não se preocupam com falta de respeito.
Quero ser como uma criança que sabe da importância do ser e despreza o ter.
Quero ser como uma criança que entrara no reino dos céus.
Quero ser como uma criança que ama o mundo que lhe rodeia
Que gosta de fazer as coisas mesmo sem ter ideia
Que vive uma vida normal na aldeia
Sonha ser como o homem aranha lançar teia.
Quero ser como uma criança que bani o ego e vive só com a alma
Que coloca as mãos na chama
Porque não sabe o bem nem o mal
Quero ser como uma criança que brinca livremente porque todos os dias é carnaval
Ajuda a outra criança porque ela é original
Quero ser como uma criança que tem amor incondicional.
Sténio Afénix
Luanda - Angola
AMOR UTÓPICO
Quando me afundo braços da Helena
Mulher que o meu coração inflama
Toda minha mão de vaca entorpece
Esta minha boca é babugem que cai penosamente.
Obrigando-me a comprar um babete.
De tanto pensar nela esqueci a minha existência,
Às vezes procuro-me e não me encontro,
Quiçá perdido na simetria do seu peito angelical.
Vejam só aquela bombista!
Sem granadas nem dinamites
Mas com o corpo de matar.
Ela é o veneno que mata alegremente
É o pensamento que sempre em mim está pensando
É o perfume que se encravou nos meus pulmões
Fazendo-me perder a razão.
Já lhe disse que a amo,
Mas tenho medo tê-la, e depois não tê-la,
Prefiro ama-la assim, dissimuladamente e tão longe dela
Vala a pena morrer mas a utopia viver.
Dércio Henriques
Quelimane - Moçambique
LÁGRIMAS ANCESTRAIS (“Dorpoesia”)
“O homem está no mundo mas não pertence ao mundo(...)
Todas as almas são uma só alma...” - (Alcorão)
... e tirarei todas as lágrimas de sangue
Da alma angustiada de minha sofrida mãe negra
E as transformarei, nos engenhos e moinhos de mim mesmo, a “dorpoesia”
em afropoemas
Assim no ferrão do tronco, como no penhor da liberdade
Assim no pelourinho da casagrande, como no arado da senzala
Assim no ventre expatriado, como nas asas da suprema redenção
Assim na terra como no céu...
E sentirão todos os povos da terra desses meus poemas tristes
Das estrofes amargas, de almas-naus em desenredos e desterros
E sentirão os olhos de meus pensares cheios de sangue pisado
E verão minhas mãos marcadas – como tudo, até no meu DNA
E lerão meus poemas
Cheios de raízes de outras terras de bendições e lonjuras
muito além do que poderíamos chamar de humanus...
E diremos aos filhos dessa terrabrasilis
A descendência de ancestralidade predada
E então as minhas “cantárias” evocarão esse povo, essa raça, essa nação
A terra peregrina exilada nos navios negreiros da história-mãe...
E de seus afrodescendentes nessa terra-brasilis
de muito outro e pouco pão...
E todas as minhas cantagonias em lágrimas-poemas
Chorarão por mim; e para muito além de mim, da minha “dor-poesia”
Como também soarão na savana das consciências
Pois toda história é remorso
Mas os descendentes dos inumanamente escravizados ainda sonharão
uma justiça social ainda que tardia!
Silas Correa Leite
Itararé - SP