1. Quando foi que o Ivan Carlo se tornou Gian Danton?
Boa pergunta...rsrs Em 1989 eu comecei a escrever quadrinhos e escrever sobre quadrinhos. Na época, todo jornal tinha que ter uma coluna sobre quadrinhos e o jornal O Liberal, de Belém, me convidou para escrever sobre o assunto. Mas já haviam três outros colunistas com o nome de Ivan no jornal, dois deles com meu sobrenome (Ivan Andrade e Ivan Oliveira). Eu percebi que precisava de um nome que me diferenciasse. Além disso, havia a paranoia de que a ditadura militar iria voltar e um amigo de Teatro, que tinha sido preso pelos militares, ao ver o tipo de história que eu e o Bené Nascimento estávamos fazendo, me aconselhou a usar um pseudônimo. Como na época estava-se comemorando os 200 anos da revolução francesa, resolvi usar o Danton como homenagem. O Gian veio do Gian Lorenzo Bernini, o grande mestre do barroco italiano, cuja obra admiro muito. Da junção do revolucionário francês com o artista italiano surgiu um nome único no mundo.
2. Como você descobriu que escrever era uma das coisas que você realmente queria fazer na vida e quando você escreveu seu primeiro roteiro?
Eu sempre quis escrever. Quando era criança, fazia uma espécie de fanfic das histórias da Turma da Mônica. Escolhi cursar jornalismo porque era um curso que lidava com a escrita. Já na universidade, um professor passou um trabalho sobre meios de comunicação de massa e nosso grupo pegou os quadrinhos (na época todo mundo lia quadrinhos, eles eram acompanhados como se acompanha série hoje em dia). Alguém me avisou que, no bloco ao lado, estudava um rapaz que fazia quadrinhos profissionalmente. Era o Bené Nascimento (hoje Joe Bennett). Fui procurá-lo para uma entrevista que acabou durando a tarde inteira e terminou com o convite para fazermos um fanzine. Pouco tempo depois, quando preparávamos o primeiro número do Crash! (o primeiro zine de quadrinhos do Pará), o Bené chegou com uma história pronta, Floresta Negra, e me perguntou se eu queria colocar o texto. Foi o primeiro roteiro que escrevi e o primeiro publicado – na revista Calafrio.
3. Antigamente, os alunos faziam trabalhos de classe em cima de livros, tais como Os Meninos da Rua Paulo, etc. Como professor, você acredita que os quadrinhos podem, de alguma forma, influenciar as novas gerações de tal forma que a leitura se torne um prazer e não uma obrigação?
Quando morava em Belém, eu lecionava oficinas de quadrinhos nos bairros pobres (um ótimo projeto, que infelizmente foi extinto). Logo na primeira aula, eu perguntava para as crianças qual era a diferença entre quadrinhos e livros. Eu esperava, claro, que elas apontassem a questão das imagens, que são obrigatórias nos quadrinhos. Mas uma menina deu uma resposta ingênua, mas muito interessante: “Quadrinhos são legais, livros são chatos”. Ou seja, mesmo para quem não desenvolveu o hábito de leitura, quadrinhos são identificados com diversão, como algo que se faz por prazer e não por obrigação. Esse exemplo é perfeito para demonstrar o quanto a utilização de quadrinhos em sala de aula pode ser benéfica, se forem bem usados (levando em conta a idade dos alunos e seus interesses).
4. "Manticore" é uma graphic novel de ficção científica escrita por você. Entre outros prêmios, ganhou um HQ Mix e o prêmio Angelo Agostini com ela. Que peso tem a ficção científica em seus trabalhos? Você é fã do gênero ou simplesmente escreve o que vem na hora de inspiração? Se sim, você é fã do gênero, quais trabalhos de ficção científica nos quadrinhos, que marcaram sua vida, como leitor, não sendo os seus?
A história da Manticore é curiosa. Um editor de Curitiba queria lançar um quadrinho sobre o chupa-cabras. Era para ser uma revista oportunista, de humor, para aproveitar o sucesso da história (na época quase todos os domingos havia uma matéria sobre o chupa-cabras no programa do Gugu). Eles nos entregou um rafe que havia feito. Mostrava o ET andando no campo e pensando: “Vou chupar uma cabra! Vou chupar uma cabra!”. Eu pensei: “Não vou fazer isso nem que me paguem!” Rs. Aí eu e o Antonio Eder percebemos que o editor tinha na parede um cartaz do Arquivo X (aquele famoso I want to believe) e tivemos a ideia de propor algo no estilo Arquivo X. Ele aceitou na hora. Eu, claro, adorei. Sempre fui fã de ficção científica, em especial os textos de Ray Bradbury e Isaac Asimov. Nos quadrinhos, gosto muito da fase do Flash Gordon escrita pelo Harvey Kurtzam. Outro quadrinho do qual sou realmente muito fã é Valerian, da dupla francesa Crispon e Mezieres. Acho uma pena que no Brasil a FC tenha pouco desenvolvimento nos quadrinhos nacionais. Aliás, dentro da ficção científica tenho um trabalho que é uma homenagem ao gênero: a webcomics Exploradores do Desconhecido, com desenhos de Jean Okada.
5. Temos visto muitos brasileiros fazendo sucesso no exterior, com HQ's. Como você vê o mercado brasileiro atual de histórias em quadrinhos? É fácil ser roteirista de quadrinhos no país?
Não, não é nada fácil. O pagamento é mínimo e a valorização menor ainda. Durante muitos anos, na época em que as editoras pagavam para quem produzia quadrinhos, era comum o editor aceitar uma HQ com roteiro ruim, desde que os desenhos estivessem bons. Então, claro, os desenhistas aproveitavam para ganhar também a parte do roteiro (razão pela qual digo que no Brasil todo desenhista de quadrinhos é também roteirista). Então, quem se dedica apenas ao texto tem pouca importância. Quando aos brasileiros fazendo sucesso no exterior, todos são desenhistas. Alguns poucos desses desenhistas também escrevem e conseguiram emplacar seus trabalhos autorais lá fora. Mas nenhum brasileiro, por exemplo, virou roteirista dos X-Men, embora vários desenhistas brasileiros tenham passado pelo título. Eu escrevi histórias de um personagem famoso de ficção científica, o Dan Dare, para uma editora inglesa e descobri que até mesmo lá fora a coisa é complicada: levaram mais de dois anos para me pagar. Na verdade, a única vez em que realmente senti que havia uma valorização ao roteirista foi quando trabalhei para o Maurício de Sousa, no álbum MSP+50. Aliás, todos os meus amigos, roteiristas do MSP, sempre me falam que ali é um local que valoriza muito o roteiro.
6. Muitas pessoas acreditam que escrever é difícil. Alegam falta de inspiração, prazer, interesse, etc. Observando sua biografia, parece que escrever é algo que flui com extrema facilidade. De onde vem tanta inspiração?
Ledo engano. Cada texto para mim é um parto. Não sou do tipo Jack Kirby, que criava um universo antes do café da manhã. Mas estabeleci para mim uma rotina: escrever todo dia, mesmo que uma página. Sabe o lance de 1% inspiração e 99% transpiração? Pois é. Sempre escrevi muito, desde quando comecei a trabalhar com quadrinhos, no final dos anos 1980. E tenho uma técnica para evitar brancos criativos: trabalho com mais de um projeto ao mesmo tempo. Se um deles empaca, parto para o outro.
7. Dizem que não importa quanto filhos tenhamos, o amor que sentimos será sempre igual. Não há filhos preferidos, entretanto, sabemos que cada um carrega em si suas particularidades e diferenças, até no temperamento. Entre tantos "filhos" literários (livros, contos, quadrinhos, etc.) e tendo amor por todos, qual deles seria o mais "temperamental" na sua opinião?
Como tenho toda uma rotina de produção – e o hábito de escrever diariamente, mesmo que seja uma resenha, dificilmente tenho problemas com algum texto. Além disso, quando empaco em um texto, parto para o outro (a título de curiosidade, descobri que Júlio Verne fazia a mesma coisa, escrevendo dois livros ao mesmo tempo). Então posso dizer que nenhum dos meus filhos deu trabalho para ser criado...rs rs... Mas algo comum é o personagem ganhar vida. O Lobato dizia que a Emília ganhava vida e escrevia seus próprios diálogos. Isso acontece com muitas histórias minhas. Talvez o caso mais emblemático tenha sido a Zu, personagem do meu segundo romance, O uivo da Górgona, que era para ser de um jeito e acabou se transformando completamente durante a narrativa.
8. Fale-nos um pouco sobre O uivo da górgona.
O uivo da górgona é meu segundo romance. É uma história de zumbis misturada com teorias da comunicação. Eu sempre gostei de zumbis porque os acho uma excelente metáfora de um fenômeno social: a massificação, cada vez mais comum na nossa sociedade. No processo de massificação, a pessoa perde sua racionalidade, passa a agir pelo que chamamos de “instinto de manada”. A mídia pode provocar isso, assim como as drogas, a religião e até a política (só lembrar do nazismo). Então o romance é sobre esses processos. Na história, um som transforma pessoas em zumbis. A trama é focada nos sobreviventes. A forma como o romance foi construído também é interessante: eu o escrevi todo em um grupo de histórias de terror no Facebook, um capítulo por dia. Foi uma forma interessante de ter feedback imediato. Eu escrevia e já recebia uma retorno dos leitores. Foi uma forma de tornar o processo de escrita menos solitário e, ao mesmo tempo, testar o texto com leitores. O livro foi lançado via Catarse e vários dos que liam no grupo apoiaram o projeto.
9. Além de escritor e roteirista, você também é pesquisador, com mais de um livro sobre roteiro, não é mesmo?
Sim. Quando comecei a escrever roteiro, não existia nada sobre o assunto. O máximo que você encontrava eram manuais de roteiro para cinema, em especial o do Doc Comparato, e a linguagem de cinema é muito diferente dos quadrinhos. Assim, sempre fui muito solícito a responder perguntas de iniciantes, já que eu não tive esse apoio quando comecei. Inicialmente respondia por carta, depois por e-mail. Com o tempo criei um blog para publicar algumas das respostas a essas dúvidas de iniciantes. Ali pelo ano 2000 me convidaram para fazer uma oficina de roteiro na modalidade à distância e preparei uma apostila para o curso. Essa apostila foi disponibilizada na internet, gratuitamente, e se tornou uma das principais referências para a nova geração de roteiristas de quadrinhos. Algum tempo depois a editora Marca de Fantasia me convidou para ampliar essa apostila e isso deu origem ao livro O roteiro nas histórias em quadrinhos. Em 2013 fui um dos convidados da convenção de quadrinhos Muiraquicon, em Belém. Estava agendada uma palestra minha sobre roteiro, mas um dos convidados faltou e os organizadores me pediram para realizar uma segunda palestra sobre o tema. Como muitas pessoas iam assistir as duas palestras, elas precisavam ser diferentes. Dessa forma, na segunda fiz uma fala mais autobiográfica. Eu falava sobre as dificuldades que enfrentei e como as superei e, assim, ia ensinando alguns princípios básicos de roteiro. Quem viu as duas acabou gostando mais dessa e a, ao final da palestra vieram conversar comigo e sugerir um livro com esse enfoque. Assim nasceu o Como escrever quadrinhos, lançado em 2015 pela Marca de Fantasia.
10. Um poeta pode tornar-se um roteirista e vice-versa, ou as pessoas tornam-se presas à um gênero apenas (por ex.: uma vez poeta, sempre poeta?)?
Houve um poeta que se tornou um grande roteirista de quadrinhos: Paulo Leminski. Ele escreveu poucas, mas ótimas HQs, entre as melhores publicadas pela extinta editora Grafipar. Mas no geral, os escritores que tentaram escrever quadrinhos não se deram muito bem. O grande problema é que quadrinho é quadrinho, literatura é literatura. Podem parecer o mesmo, mas são muito diferentes. O Leminski conseguiu migrar para a linguagem dos quadrinhos porque o estilo dele na poesia era o Kohan japonês – e a escrita japonesa é muito associada à imagem. A experiência dele com os kohans permitiu que ele escrevesse roteiros muito visuais, com texto na medida certa.
11. Você pode nos falar um pouco sobre alguns projetos nos quais você esteja trabalhando no momento?
Eu já escrevi roteiros de alguns álbuns que vão sair, como o novo volume do Gralha e dos Clássicos revisitados (ambos da editora Quadrinhópole). Também estou escrevendo a web-tira As aventuras do pequeno Xuxulu, uma versão infantil do clássico monstro do H.P. Lovecraft. O interessante aí é justamente a ironia da situação: um demônio interestelar mostrado como uma criança enfrentando todos os problemas que uma criança enfrenta. As tiras são publicadas no Facebook: https://www.facebook.com/pequenoxuxulu.
12. Qual mensagem você gostaria de passar aos jovens que apreciam seu trabalho, são seus fãs e querem, futuramente, roteirizar quadrinhos?
Antes de mais nada, qualquer um que queira escrever quadrinhos deve se lembrar que só escreve bem, quem lê muito e pratica muito. Quando falo em ler muito, falo em ler tudo: não só quadrinhos, e não só um tipo de quadrinhos. Conheço gente que só lê mangá. Conheço gente que só lê super-heróis. Todo bom roteirista que já conheci é um leitor voraz de tudo. E estabeleça uma rotina de produção. Escreva todo dia, mesmo que um parágrafo. Se leu um quadrinho e gostou, escreva uma resenha, tentando analisar o que fez com que aquele quadrinho fosse bom. Quando eu era novo, fazia isso para a Editora Gaveta. Mas hoje em dia, qualquer um pode divulgar seu trabalho – as redes sociais estão aí para isso. Ao invés de usar o Facebook só para publicar fotos suas, use para mostrar seu trabalho. Quem não é visto, não é notado. Se eu tivesse dito não quando o Bené me propôs fazer um fanzine, eu nunca teria me tornado roteirista. Se eu tivesse dito não quando ele me propôs escrever o texto da Floresta Negra, eu nunca teria me tornado roteirista de quadrinhos. Então, a grande dica é: leia muito, escreva muito, mostre-se e aproveite as oportunidades.
Bom, pessoal...essa foi a entrevista incrível e exclusiva com o Gian Danton. Aguardamos sua opinião, pergunta, comentário aqui mesmo, no Portal, na seção Eu, Leitor. Aguardamos seu feedback.
Gian, agradecemos muito a sua disponibilidade em nos conceder essa entrevista riquíssima em experiências, lições e história de vida. Muito sucesso em seus projetos, são os votos de toda a Equipe Sinestesia! Gratidão!
E-mail para contato: profivancarlo@gmail.com
Página no FB: @GianDanton
Página no FB: @uivogorgona

Gian Danton
Nascido em 1971, na cidade de Lavras - MG, Gian Danton, pseudônimo de Ivan Carlo Andrade de Oliveira, é um escritor e roteirista brasileiro de histórias em quadrinhos, além de ser professor universitário. Autor dos romances Galeão e O Uivo da Górgona, Gian foi o ganhador do prêmio Araxá como melhor roteirista, em 1991 e também ganhou os prêmios Angelo Agostini, HQ Mix e Associação Brasileira de Arte Fantástica. Em 2000, recebeu o Ângelo Agostini e o HQ mix pela graphic Manticore. Em 2010 foi o ganhador do primeiro concurso de contos e crônicas da editora Geração. Vamos conhecer mais sobre o trabalho desse mestre:
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[29/08/2017]

