
CHRONICA
Novembro 2016
EM NOVEMBRO SEMPRE CHOVE
Camila nos visitava no mês 11 de cada ano. No início, esperava ansiosamente, riscava os dias em um calendário velho, que ficava na cozinha caindo aos pedaços de onde morávamos.
Ela sempre trazia consigo, na bagagem, presentes, histórias novas e uns trocados para Dona Irene. Achava sensacional, não via a hora de poder ser ela. Até que fiz 15 anos, então, entendi que Camila, na verdade, nos trazia anualmente os restos de sua felicidade, a sua nova vida era perfeita e a nossa impiedosamente infeliz.
Sempre quis entender o porquê de sua partida , ela se despediu apenas com um bilhete. Dona Irene chorou por 1 semana inteira.
Quando ela chorava seus olhos ficavam ainda mais verdes que já eram, mamãe era muito formosa, ao contrário de papai, que parecia uma capivara.
Era final de outubro, meu aniversário de 15 anos se aproximava, não que isso mudasse alguma coisa, mas espreitava as chances, eu queria completar 16, arrumar um trabalho e partir pra longe, não deixaria um bilhete para mamãe, eu a levaria comigo. Papai merecia ficar. Ele nunca foi bom para Dona Irene, para mim, mal olhava; ele trabalhava, mas sempre deixava faltar de tudo, não deixava mamãe trabalhar, eu mantinha minhas suspeitas que ele a agredia quando eu não estava por perto, ela sempre estava com um hematoma causado por uma queda, uma trombada, e isso acontecia muito frequentemente para uma mera coincidência.
Minha mãe era calada. Tinha comigo que seria positivo caso falasse mais.
Eu me lembro de uma ocasião em que ela gritava forte, Camila chorava muito; era pequena demais pra entender o que houve, mas guardei na memória.
Chegado o dia do meu aniversário, me vesti com o último presente dado por Camila, um vestido azul, bonito. Imaginei que ela viria, pois era uma data considerada especial por alguns. Fiquei a ir e voltar até o portão, Camila não entrava, ela entregava tudo por ali, isso incluía a saudade e o arrependimento de estar bem, e nos deixar ali, na merda.
Mamãe também a esperava. Percebi pela sua inquietação, idas consecutivas à entrada da casa a delatavam.
Ouvi o barulho de palmas, mamãe correu para receber as migalhas de amor fraternal.
A chuva forte começa. Novembro nunca decepciona.
Eu ia saindo, quando papai me chamou. _ Alice, venha aqui no quarto pegar seu presente.
Dez minutos depois, mamãe grita, eu choro amargamente, Camila olha, perplexa, o exato momento de seu perdão, sua redenção dentro de mim, eu entendo o motivo de seu maldito bilhete de despedidas.
Meu pai era bicho, não era gente. Era monstro.
Pego algumas peças de roupas e coloco em uma sacola de plástico, enlaço minhas mãos a de para Camila, e parto.
Dona Irene, fica, com seus grandes olhos verdes, quase do tamanho de sua omissão.
Ano que vem trarei o que sobrou de mim, embrulhados para presente.
Trarei em novembro, pois em novembro sempre chove, e a chuva lava quase tudo.
Viviane Santyago

